quinta-feira, abril 30, 2009

AFINAL, O QUE É SER ÍNDIO?
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Identidade Indígena:


O imaginário nacional ainda está permeado por um modelo único e cristalizado do que é ser “índio”. Para a maioria dos brasileiros, ser indígena ainda signifca possuir imagem semelhante àquela que as fontes históricas registraram há aproximadamente 500 anos. Essa imagem de índio – corpo nu, cabelo liso e preto, habitante das matas, falante de língua exótica – recai como forte cobrança para os povos indígenas contemporâneos. Quem não se encaixa comodamente nesse estereótipo facilmente sofre a suspeição: mas ele ainda é índio? É índio de verdade? Curioso, se pensarmos que à nossa própria condição não aplicamos a mesma lógica. Não questionamos ou temos nossa “identidade” cultural colocada sob suspeita simplesmente porque não possuímos imagem similar à dos nossos antepassados. Ao olharmos os retratos dos nossos avós ou bisavós, estranhamos os trajes, utensílios domésticos, transportes, mas não deixamos de reconhecer nessas imagens algo que faz parte de nós. As diferenças não anulam o sentimento da pertença, justamente porque o que constitui a identifcação e a construção da vida coletiva vai além do que é aparente.
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Em 1997, durante a Semana dos Povos Indígenas, em Minas Gerais, tive a oportunidade de ouvir o indígena boliviano Carlos Intimpampa falar a respeito da resistência que as sociedades não-índias possuem em (re)conhecer os povos indígenas contemporâneos. Mediante o violento processo colonizador, os europeus disseram que os hábitos e crenças dos povos que aqui encontraram não eram “aceitáveis” e que era necessário que os indígenas falassem o seu idioma, rezassem para o seu Deus, comessem o seu tipo de comida, usassem o seu tipo de roupa. Os casamentos interétnicos foram estimulados como política de dominação, integração e assimilação. Após cinco séculos de imposição, indígenas possuem cabelos crespos ou loiros, usam camisetas, falam português, comem alimentos industrializados, usam celulares. No entanto, não é mais isso que se deseja dos povos indígenas. Deseja-se que eles retornem àquele modelo e àquela imagem de cinco séculos atrás.
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Carlos Intimpampa então questionou: “O que vocês querem, afnal?!”
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Segundo ele, historicamente cobra-se dos povos indígenas que eles sejam exatamente diferentes do que são, porque é assim que se estabelece e se mantém uma relação de dominação: nega-se o sujeito. Para ele, enquanto os povos indígenas não conseguirem garantir o (estranho) direito de serem o que são, a relação de submissão historicamente existente difcilmente será superada. O Brasil presenciou, nas últimas décadas, a proliferação de identidades indígenas. Povos que não eram reconhecidos como tal ou que foram considerados extintos pela historiografa ofcial anunciaram sua origem e reivindicaram direitos. A reação da sociedade – e aí o Estado possui papel de destaque – foi de suspeição e descrédito em relação a essas coletividades. Muitas vezes, tratados como “falsos índios” em busca de acesso a direitos especiais, eles sofreram discriminação e percorreram longa trajetória para se fazerem ouvidos. Estabeleceram uma relação singular com sua origem. E é com base nessa relação que esses povos têm elaborado sua razão de ser. Em função de uma origem pensada como comum e pré-colombiana, uma história compartilhada – marcada pelo processo de submissão e espoliação –, esses povos reivindicam destino comum e distintivo do restante da sociedade nacional, e possuem um forte senso de originalidade e solidariedade coletivas.
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Segundo o antropólogo João Pacheco de Oliveira, identifcar-se como indígena, nos dias de hoje, não pode ser entendido como simplesmente a busca por copiar modelos ou padrões que existiram no passado. Identifcar-se como indígena é algo muito mais profundo do que “resgatar” um antigo modo de ser, como se o tempo e a História não tivessem imprimido suas marcas. Identifcar-se como indígena supõe utopia, modo de ser e de encarar o futuro com base no passado, nessa origem pensada como comum e anterior ao período do contato. Ser indígena vai muito além de uma imagem. Muitos são os povos que lutam por poderem ser como são e ainda assim serem reconhecidos como indígenas pela sociedade.
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Se o nosso desejo é de fato romper com séculos de dominação e colonização na História brasileira, faz-se urgente ouvir esses legítimos sujeitos históricos, para nos despir de nossos (pré)conceitos e assim compreendermos quem são os povos indígenas no Brasil nesse limiar de século.
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* Vanessa Caldeira é mestranda em Ciências Sociais da PUC–SP.

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